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Grupo de familiares de vítimas da Kiss pretende processar Netflix por série sobre a tragédia

Empresário que perdeu filha de 19 anos na tragédia quer que parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e construção de memorial

30/01/2023 08:28 por redação


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Pedro Sol (Luís), Raquel Karro (Lívia) e Paulo Gorgulho (Ricardo) interpretam a família de Marco (Sandro Aliprandini) em "Todo Dia a Mesma Noite" Guilherme Leporace/Netflix / Divulgação


 

Um movimento formado por pais de vítimas e também moradores de Santa Maria está revoltado com a exibição da série Todo Dia a Mesma Noite, disponível na Netflix. Segundo o coordenador do grupo, o sentimento é de indignação e injustiça. O empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes perdeu uma filha de 19 anos na tragédia, a jovem Évelin Costa Lopes.

- Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos. Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos. Há pais passando mal por causa da série. O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós - afirma Eriton.

Alegando “exploração financeira da tragédia”, pais e apoiadores começaram uma mobilização e criaram um grupo de Whatsapp para discutir o assunto. Eles não fazem parte da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. A série Todo Dia a Mesma Noite, baseada no livro homônimo da jornalista mineira Daniela Arbex, é uma obra que mistura realidade e ficção, interpretada por atores. 

O grupo contratou uma advogada de Santa Maria para receber orientações jurídicas, conduzir o caso e questionar a destinação do dinheiro arrecadado pela Netflix. Segundo Juliane Muller Korb, o ponto crucial é abordar a responsabilidade afetiva e social dos streamings.

- Todas as famílias sentem a mesma dor, mas de forma distinta, inclusive em relação a esta série. Todas têm mágoa com o poder judiciário e com a impunidade até aqui. A grande questão é que faltou sensibilidade, por parte da Netflix, de fazer um contato com os pais. Não para pedir permissão nem coibir a licença poética, pois a história não tem dono, mas para avisar que seria algo totalmente diferente de tudo que eles já viram. Eles estavam preparados para um documentário, não para uma série dramática. Os pais e os sobreviventes estão "acostumados" a ver materiais jornalísticos, com reproduções e relatos fidedignos. Mas a série é diferente. O impacto foi muito forte porque é uma simulação, uma reprodução, com rostos diferentes, com atores. Eles estão "acostumados" com o pós-tragédia. E a série mostra o antes, então, é como se ocorresse de novo. É uma linha muito tênue entre ficção e realidade - explica Juliane. 

A advogada acrescenta que seu papel é fazer a interlocução com a Netflix, tentar um diálogo para que pelo menos uma parte do lucro seja destinada às vítimas, aos sobreviventes e à construção do memorial. Ela acredita que seja  viável ação por danos morais e sequelas médicas, pois, segundo ela, pais voltaram para a terapia por causa da série. O encaminhamento deve ser feito ainda nesta semana. Procurada, a Netflix não se manifestou até a publicação desta reportagem.

tragédia na boate Kiss completou 10 anos na sexta-feira (27). O incêndio deixou 242 mortos e 636 feridos.

Associação de vítimas não concorda com processo contra Netflix 

Em texto publicado em redes sociais e assinado pelo presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria, Gabriel Rovadoschi Barros, diz que os familiares estavam "cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro", e a entidade "sente-se representada" pela criação da Netflix e pelo livro.

A nota sustenta ainda que a produção "não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância". O trecho faz alusão a pais que foram processados por integrantes do Ministério Público por terem feito críticas à atuação deles no caso.

A associação reitera que não está movendo nenhum processo contra os responsáveis pelas obras, e nem pretende fazer isso, por acreditar "na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória".

Leia a íntegra da nota da associação

"Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série Todo Dia a Mesma Noite, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através desta nota que estávamos, sim, cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.

A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.

Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o primeiro dia de nossa fundação.

 Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.

Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios, pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por Justiça.

Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.

Santa Maria, 29 de janeiro de 2023."

 

 

Gaúcha ZH



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